O rearranjo do campo democrático

Imagem: Kelly
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GERSON ALMEIDA*

Para avançar no acúmulo de forças é preciso construir uma identidade programática que consiga ir além da reação às ações da ultradireita

Politicamente, o primeiro ano do governo Lula começou no dia 8 de janeiro – quando a intentona bolsonarista tentou criar condições para impor uma solução de força e quebrar o pacto democrático no Brasil – e terminou com a aprovação da reforma tributária e as indicações de Paulo Gonet Branco para a PGR e de Flávio Dino para o STF. Nada mal para um governo que, desde o início, age dentro de uma margem estreita de manobra e sofre um rigoroso cerco de inimigos fortemente entrincheirados na liderança de alguns dos principais setores econômico-financeiros, cujos interesses são zelosamente defendidos pela maioria no Congresso. 

Mas é igualmente verdade que o ano de 2024 começou com a aprovação da Lei Orçamentária Anual de 2024, que destinou escandalosos R$ 53 bilhões para as emendas discricionárias dos parlamentares e subtraiu R$ 61,3 bilhões do total previsto inicialmente para obras de infraestrutura e moradia do “Novo PAC”, uma das principais bandeiras no governo. Ao negociar cada proposta com uma “faca no pescoço” do governo, a direita mostra que está determinada a tentar impedir o alargamento da liberdade de ação do governo. Esse embate escancara a dificuldade do governo em desatar o conjunto de nós políticos e institucionais imposto ao país a partir do golpe de 2016.

Neste contexto, é notável o fato de o governo ter terminado esse primeiro ano com um padrão de estabilidade social, política e econômica inimaginável no início do ano, depois da tentativa de reeditar o golpe de 2016, em 8 de janeiro. As pulsões mais selvagens da direita e a sua determinação de resolver com paus, pedras e bombas as questões políticas foram contidas pela recomposição de um campo democrático no país, mas elas estão longe de terem sido completamente sublimadas e permanentemente dão mostras de estarem apenas em estado de latência, esperando a oportunidade adequada.

O rearranjo do campo democrático, no entanto, parece ter sido realizado mais como reação ao estreitamento do núcleo de poder no governo Bolsonaro, que gradativamente foi dando maiores poderes à familícia, aos militares do seu entorno e às frações do poder econômico, cujas fronteiras com o crime são difíceis de traçar. Exemplos são alguns setores do agronegócio que prosperam com o avanço sobre a floresta amazônica e com o envenenamento da agricultura brasileira, o setor de mineração em terras indígenas, os setores empresariais ávidos por eliminar qualquer tipo de proteção aos trabalhadores, etc.

Esse estreitamento do campo golpista não teria ocorrido sem a resistência dos movimentos sociais e a capacidade política dos partidos de esquerda em lutar contra as regressões civilizacionais e mostrar que havia alternativa ao neoliberalismo. Foi essa resistência social e política que criou as condições para uma rearticulação do campo democrático, mesmo que ainda persistam imensas dificuldades para serem superadas, especialmente pela ausência de um acordo programático consistente para o período.

No processo de reorganização dos campos políticos, houve um símbolo que agregou um inestimável valor ao campo da resistência, que foi a postura de Lula em não aceitar qualquer barganha que o levasse a sair da prisão de forma tutelada. Ao jamais reconhecer a legitimidade do processo e da condenação que lhe foi imposta, Lula não cansou de afirmar que “eu não troco a minha dignidade pela minha liberdade”. Esse gesto conferiu grandeza moral ímpar à sua liderança política já consolidada e impediu qualquer arranjo que excluísse o campo por ele liderado do protagonismo da vida política nacional, como era o desejo do campo golpista.

Em grande medida, foi durante o próprio processo eleitoral que os campos políticos foram sendo reorganizado, o que torna compreensível que a prioridade neste primeiro ano de governo tenha sido trabalhar na delicada tarefa de ampliar a coesão da base de apoio política e social e, ao mesmo tempo, impedir a possibilidade de recomposição do campo golpista de 2016. Não é pouco, mas é insuficiente.

Para que possamos avançar no acúmulo de forças, é preciso construir uma identidade programática que consiga ir além da reação às ações da ultradireita (por mais importante que isso seja) e produzir compromissos entorno de um de luta contra as desigualdades e mazelas humanas produzidas pelo modelo predador neoliberal, que é o caldo de cultura próprio para todo o tipo de protofascismo e salvacionismo. Ganhamos por pontos o primeiro round desta luta decisiva, mesmo que o adversário tenha usado de todos os golpes baixos, mas nos próximos temos que nocautear da uma vez por todas o golpismo. É esse o nosso desafio.

*Gerson Almeida, sociólogo, ex-vereador e ex-secretário do meio-ambiente de Porto Alegre, foi secretário nacional de articulação social no governo Lula 2.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Tales Ab'Sáber Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Marilena Chauí Ronald Rocha Jean Pierre Chauvin Luis Felipe Miguel Eugênio Trivinho Denilson Cordeiro Airton Paschoa Vinício Carrilho Martinez Boaventura de Sousa Santos José Geraldo Couto Lucas Fiaschetti Estevez Rodrigo de Faria Alexandre de Lima Castro Tranjan Annateresa Fabris André Márcio Neves Soares Francisco Fernandes Ladeira Flávio R. Kothe Maria Rita Kehl Mariarosaria Fabris Celso Favaretto Benicio Viero Schmidt João Carlos Salles Alexandre Aragão de Albuquerque Luiz Werneck Vianna Julian Rodrigues Ricardo Abramovay Bernardo Ricupero José Raimundo Trindade Henri Acselrad Eliziário Andrade Luiz Roberto Alves Érico Andrade José Luís Fiori Flávio Aguiar Ronald León Núñez Henry Burnett Paulo Martins Paulo Sérgio Pinheiro Gilberto Lopes Slavoj Žižek Milton Pinheiro Ari Marcelo Solon Daniel Afonso da Silva Leonardo Sacramento Bento Prado Jr. Alexandre de Freitas Barbosa João Carlos Loebens Marilia Pacheco Fiorillo Eugênio Bucci Eleutério F. S. Prado Lincoln Secco Dênis de Moraes Daniel Brazil Dennis Oliveira João Feres Júnior Marcelo Guimarães Lima Luiz Marques Afrânio Catani Francisco Pereira de Farias José Dirceu Osvaldo Coggiola Carlos Tautz Anselm Jappe Michael Löwy Rubens Pinto Lyra Daniel Costa Andrew Korybko Luciano Nascimento Ricardo Antunes Igor Felippe Santos Valerio Arcary Luiz Renato Martins Remy José Fontana Gilberto Maringoni Marjorie C. Marona Sergio Amadeu da Silveira Salem Nasser Manuel Domingos Neto Rafael R. Ioris Alysson Leandro Mascaro José Micaelson Lacerda Morais Ladislau Dowbor Jorge Luiz Souto Maior João Lanari Bo Caio Bugiato Juarez Guimarães Eleonora Albano Mário Maestri Marcos Silva Fernando Nogueira da Costa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Everaldo de Oliveira Andrade Andrés del Río Jean Marc Von Der Weid Eduardo Borges Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcelo Módolo João Adolfo Hansen Chico Alencar Armando Boito Paulo Capel Narvai Priscila Figueiredo Atilio A. Boron Tadeu Valadares Elias Jabbour Thomas Piketty Lorenzo Vitral Antonino Infranca Luís Fernando Vitagliano Ronaldo Tadeu de Souza Marcos Aurélio da Silva Ricardo Fabbrini Berenice Bento João Sette Whitaker Ferreira Kátia Gerab Baggio Michael Roberts Francisco de Oliveira Barros Júnior Vladimir Safatle André Singer Valerio Arcary Chico Whitaker Michel Goulart da Silva Leonardo Boff Gerson Almeida José Machado Moita Neto Celso Frederico Antonio Martins Fábio Konder Comparato Fernão Pessoa Ramos Vanderlei Tenório Otaviano Helene Paulo Nogueira Batista Jr Antônio Sales Rios Neto João Paulo Ayub Fonseca José Costa Júnior Gabriel Cohn Paulo Fernandes Silveira Manchetômetro Luiz Bernardo Pericás Claudio Katz Walnice Nogueira Galvão Bruno Fabricio Alcebino da Silva Yuri Martins-Fontes Sandra Bitencourt Leda Maria Paulani Tarso Genro Marcus Ianoni Ricardo Musse Heraldo Campos Renato Dagnino Carla Teixeira Leonardo Avritzer Luiz Eduardo Soares Bruno Machado Samuel Kilsztajn Matheus Silveira de Souza Liszt Vieira Jorge Branco

NOVAS PUBLICAÇÕES